Saideira
02/08/13 14:39Os franceses de esquerda, direita e centro (se é que isso existe de fato aqui) estabeleceram uma espécie de pacto de melancolia quando falam sobre o futuro de seu país. É um mal-estar existencial que se espraiou na imprensa, na política, nas conversas dos cafés e é o tema do último post deste blog, que será desativado.
A crise atual – com crescimento pífio e desemprego acima dos 11% da força de trabalho (recorde desde a década de 1990) – tornou o medo do declínio do país em uma experiência concreta e dolorosa.
Neste um ano trabalhando como repórter aqui, tive oportunidade de testemunhar como ricos e pobres são passageiros da agonia. Cada qual à sua maneira, é claro.
Uccle, um próspero subúrbio de Bruxelas, se tornou um paraíso para franceses endinheirados cansados dos impostos crescentes no país. Quando estive lá, meu táxi ficou preso em um surreal engarrafamento de porsches, jaguares e audis. (O texto você lê aqui). O ator Gerard Depardieu, o mais famoso “exilado fiscal” recente, não está sozinho.
Na divisa entre Paris e a cidade metropolitana de Montreuil, uma passarela sobre a Périphérique (anel viário de 10 pistas) vira um formigueiro nos finais de semana com pessoas comprando e vendendo todo o tipo de quinquilharias usadas. A feira clandestina é movida pela “biffe”, a atividade de juntar objetos no lixo e recuperá-los para vender. A novidade é que a atividade, antes praticamente restrita a imigrantes miseráveis, serve para assalariados franceses complementarem o orçamento do final do mês. É um exemplo chocante de empobrecimento da classe média-baixa de Paris. (Leia aqui reportagem de Mercado.)
“Aqui é o deserto da República. A polícia só aparece quando há um problema grande, a educação não funciona e o desemprego é muito maior do que dizem porque muita gente sem papel não entra na estatística”, disse-me o comerciante Nasri Guergous, 48, em Amiens-Nord, uma periferia que explodiu numa onda de violência no ano passado. Sintomaticamente, o local abriga uma fábrica de pneus da Good-Year em vias de ser destivada – que foi tema de posts no blog. (Leia mais aqui e aqui.)
Para um brasileiro da minha geração, a crise atual francesa é dura, mas está longe de ser um pesadelo como o confisco da poupança em 1990. Ou a hiperinflação. Ou da aterradora onda de assassinatos que solapou Salvador durante a greve da Polícia Militar no ano passado.
A comparação é certamente imprecisa, mas sempre me pergunto se esse mal-estar francês não seria uma tortura psicológica autoimposta. Um exagero já que a própria França já viveu períodos muito mais duros no passado e saiu muito forte (com a ajuda dos americanos, é verdade). Afinal, isso aqui também a terra dos trens de alta-velocidade, do luxo, da cozinha gloriosa e de grande apreço pela alta-cultura. Está entre os cinco maiores exportadores do mundo
O jornalista americano Roger Cohen fez-se a mesma pergunta e chegou a uma conclusão bastante tenaz: o mal-estar existencial está para os franceses como a família real está para os ingleses. É um meio de definir a si próprios.
“Este mau humor é uma forma de realismo feroz, uma sabedoria amarga. É uma homenagem à visão de Hobbes de que a vida do homem é, em geral, ‘solitária, pobre, sórdida, brutal e curta’”, escreveu Cohen, no The New York Times. (Aqui o texto, em inglês)
De certa maneira, isso também é uma negação ao mito fundador da França dos nossos tempos. Charles de Gaulle escreveu em suas “Memórias da Guerra”:
“Por toda a minha vida, eu formei uma certa ideia da França. Ela nasce do meu sentimento e da razão. Meu lado afetivo imagina naturalmente a França como a princesa dos contos de fadas ou a madona dos afrescos, voltada para um destino eminente e excepcional. Pelos meus instintos, a Providência a criou para vitórias absolutas ou revezes terríveis. Se, no entanto, acontece de a mediocridade marcar seus fatos e gestos, tenho a sensação de uma absurda anomalia, imputável às falhas dos franceses, e não ao gênio da pátria (…) Em suma, a meu ver, a França não pode ser a França sem grandeza”.
O mal-estar de hoje reflete também as incertezas de um país despossuído desta grandeza.
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Este blog procurou ser uma janela aberta para os grandes assuntos deste país fascinante. Muito obrigado pela audiência e comentários durante estes meses. O blog se tornou incompatível com meus projetos profissionais nos próximos meses aqui, na França. Para contatos, enviar emails para gracilianors@gmail.com.