Como escapar de uma manada de touros
11/07/13 15:09Poucos anos depois de se ferir na Primeira Guerra Mundial, o jovem Ernest Hemingway passou a morar em Paris e visitar frequentemente o norte da Espanha. As touradas e a luz dourada de Pamplona, uma cidade próxima dos Pirineus, deram a atmosfera de seu incendiário romance “The sun also rises” (“O Sol Também se Levanta”, na edição brasileira), lançado em 1927. Cheguei a Pamplona essa semana para o festival de San Fermin (São Firmino, em português), como são conhecidos os nove dias anuais em que pamploneses e visitantes festejam pelas ruas e lotam a Plaza de Toros. Todos comem e bebem como se não houvesse amanhã.
Sanfermines são um transe coletivo como o Carnaval do Brasil. Garrafas vazias espalhadas no chão e a profusão de bêbados caídos antes de completar o percurso da volta para casa ecoaram, na minha memória, cenas já vistas em Salvador e no Recife. O cheiro de urina quase onipresente, na madrugada, reforçou essa impressão. A cidade de 250 mil habitantes recebe quatro vezes a sua população regular. A festa ferve 24 horas por dia: todos se vestem de branco, com faixas na cintura e lenços vermelhos no pescoço.
Os “encierros” são uma das marcas registradas da festa. É bem provável que você já tenha visto um pela TV. É aquela cena desatinada de de touros soltos para perseguir corredores voluntários. É um mistério por que alguém se mete nisso. Certa vez, um crítico da obra de Hemingway escreveu que “honra e coragem eram palavras que foram corrompidas pelos anos de guerra” e que, por consequência, os touros significaram uma oportunidade de redimir a valentia através do ritual. Quem nasce em Pamplona faz isso porque se orgulha desta tradição. Os estrangeiros – ou “guíris”, como os locais chamam os turistas – são atraídos pela adrenalina.
Pela tradição de Pamplona, mulheres e namoradas pagam churros e chocolate quente para os rapazes que correram no “encierro”.
Minhas razões jamais estiveram suficientemente claras (nem mesmo para mim) até a manhã desta quinta-feira.
Madruguei hoje e fui para a praça em frente à prefeitura de Pamplona. Escolhi um trecho do trajeto quando os touros ganham muita velocidade, mas os corredores são locais, e não turistas interessados em aparecer na TV. Exibicionistas são perigosos porque, andando em bandos, eles congestionam o caminho e aumentam o risco para si e para os outros.
Da praça da prefeitura, correria até a curva da rua Estafeta, conhecida aqui como a curva da morte. Corredores experientes param antes da curva ou iniciam a corrida a dezenas de metros depois dela. Nunca fazem uma virada de 90 graus junto com touros desgovernados. A curva abre o percurso final de 300 metros da rua que leva à Plaza de Toros, o fim do trajeto.
O JORNAL É O MELHOR AMIGO DO HOMEM
Às 6h45 a praça já estava lotada. Pouco depois das 7h, as cercas do percurso foram fechadas. O melhor amigo de quem vai correr num “encierro” é o jornal. Na praça à espera do foguete que a anuncia que os touros foram soltos, o jornal não é somente um passatempo no meio da multidão. Atende a uma necessidade de segurança: durante a corrida, quando estamos correndo em frente à manada, uma das mãos carrega o jornal dobrado, como uma espécie de radar para medir o quão próximo está o touro. É um instrumento precioso para não ter de virar a cabeça e descuidar dos obstáculos logo à frente (curvas e pessoas) que podem provocar uma queda e um pisoteamento. É, sobretudo, uma válvula de escape para o medo.
Às 7h30, já achei o meu lugar e comecei a folhear o “Diario de Navarra”, que trouxe uma impressionante sequência de fotos de um inglês de 26 anos que escapou por milagre no dia anterior. Logo depois da curva da Estafeta (a desgraçada), Nick Pannel viu um amigo caído e correu na direção da curva por onde, menos de um segundo depois, passariam os touros. Quando ele chegou, deu de cara com os touros que fizeram a curva rápida e atabalhoadamente. O lado de fora do chifre esquerdo de um dos animais prendeu-se a camiseta do rapaz e depois deu uma pancada no peito dele. Um susto e tanto, mas os dois escaparam com ferimentos leves.
Percebi que o jornal estava enxugando o suor das minhas mãos. De vez em quando, a multidão entoava alguma música. Uns se aqueciam, outros jogavam conversa fora. Eu lia sobre as características dos seis touros selecionados para o dia: Buenasiesta (560 kg), Promesa (525 kg), Juerguista (510 kg), Finito (500 kg), Mentirita (525 kg) e Rayosol (564 kg). Os touros pertencem a uma cabanha tradicional, a Torrestrella, que tem a mais alta taxa de feridos nos “encierros”. Sim, os jornais locais têm uma estatística atualizada para isso. Um Torrestrella matou um americano em 1995. Suava de calor e de nervoso.
Por volta das 7h45, a polícia apareceu para retirar da praça quem não ia correr. Ou quem parecia bêbado demais para tentar. Achei curioso o conceito de uma polícia que protege os cidadãos de si mesmos. Enquanto via as pessoas saindo, comecei a me perguntar se não era hora de dar o fora também. Pensamento ordinário que me ocorreu na hora: com mais gente correndo, a chance de um touro atingir outro corredor (e não a mim) era maior. Pura besteira, com menos gente na rua cai também o risco de ser empurrado ou de tropeçar em alguém na hora do salve-se quem puder. Dobrei o jornal. Comecei a alongar as pernas e pular para aquecer.
UMA RAJADA DE ANFETAMINA
Às 8h, o foguete dispara, os bichos estão soltos e só resta correr. Espero para ter a visão dos touros subirem pela rua Santo Domingo e inicio um tipo de trote na praça em frente à prefeitura. Viro a cabeça, vejo-os despontando no início da descida e acelero tudo. O jornal está na mão direita, apontado para trás.
Quando o jornal toca alguma coisa, a vida fica ridiculamente simples: corre, corre, corre, vaza da frente da manada. Cinco ou seis segundos parecem muito longos na frente de seis touros em disparada. O tempo corre diferente, mais lento. Você também: mais rápido. Não, ainda não, só mais um pouco. Não dá para errar agora, não agora, não agora. Não entra na curva, não entra na curva. Agora, agora.
Meu ombro esquerdo se chocou na porta metálica de um Burger King e uma rajada de anfetamina bateu direto no cérebro. Consegui? Deu certo? Décimos ou centésimos de segundos depois, os seis touros já haviam me ultrapassado. Vi-os de lado e de traseira. Estavam dobrando a famosa curva da Estafeta – bem no lugar onde o tal inglês nascera de novo, no dia anterior. Um cara estava caído no chão. Parecia se mexer. Com as costas na parede, eu ainda apertava o jornal com a mão direita como se disso ainda dependesse o meu futuro. Aí era o só medo de que algum dos touros caísse desorientado e voltasse em sentido contrário, bem em cima de mim, a poucos passos da curva. O coração estava na boca.
Respirei fundo, constatando instintivamente de que escapara ileso, e saí desembestado em nova carreira. Desta vez, atrás dos touros. Foram uns bons 80 metros na Estafeta. São surpreendentemente rápidos e ágeis para animais com mais de meia tonelada. Desisti e fiquei andando. Correr atrás dos touros, aliás, é uma coisa bem idiota de se fazer porque um deles pode se desgarrar e voltar.
Cruzei com um cara que havia saído comigo da praça da prefeitura, um veterano local. Ele me deu um tapão no braço e abriu o sorriso. Ele comemorava batendo o jornal dobrado, furiosamente, na palma da mão aberta. Imitei o gesto. Acreditem, faz um belo som.
Um sujeito que caiu antes da curva da Estafeta estava sendo atendido pelos paramédicos. O rapaz de uns vinte anos caiu e por pouco não foi pisoteado. Estava bem. Deitado na calçada, enquanto uma médica o examinava, ele estava consciente e ainda apertava, com muita força, o jornal dobrado.
Encontrei minha mulher numa ruazinha. Agradeci as preces dela e fomos atrás dos churros.
PS: O saldo do encierro de hoje foi de três pessoas hospitalizadas: um com traumatismo craniano, outro com o tornozelo quebrado e outro com escoriações por todo o corpo após uma queda.
Uau! Parece muito bom!
Graciliano, parabéns pelo vigor do texto, uma das melhores descrições de ação que li nas últimas semanas.
Obrigado, Josué.
Coisa de imbecis. Sempre torço para os touros.
Encierros sao diferentes de touradas. Nos encierros, a regra é o homem se ferir ou morrer, nao o touro.
Eu também Sebastião… torço pelos touros!
felicitaciones para el toro , estos esupidos de espanoles todavia estan en la edad media .
Gracias por comentar, Sergio.
Sempre torço pro touro. E bem feito pras pessoas que se machucaram. Passou da hora de acabar com essa barbárie.
Deixando os touros em paz e jogando futebol, vôlei, basquete, trabalhando. É muita maldade o que fazem com os touros!
Que delicia de sequencia. Nada melhor do que ver um touro dando o troco numa festa ridicula. Parabens ao touro!
Com estes “eventos” a Espanha se coloca na liderança mundial com o maior número de idiotas e imbecis desocupados.
Adelante idiotas!
Obrigado pelo comentário, Bernardo.
esse é galo!
Valeu, queridao.
Como dizia Einstein, não há limite para a estupidez humana. Tenho pena dos touros.
Seja em touradas ou eventos estúpidos como esse, sempre torço para o touro.
Nossa as cenas são horrível, como isso ainda deixam acontecer.
E dizem que o homem é o ser mais inteligente! Muita falta do que fazer. Sem mais comentários.
A vida tem muita coisa interessante e prazerosa. Maltratar animais parece ser o prazer de alguns seres humanos, dizem que há uma dose de adrenalina e etc, faz parte da “cultura”. A palavra cultura quer dizer criação, então correr atrás do boi, pra mim é tradição, costume, não tem haver com cultura, como a entendo. Enfim coisa que a humanidade deve deixar para trás, para se fazer humana de fato.
Qual o saldo em relação aos touros?
TODOS (exceto os novilhos) são mortos depois em uma arena pelos toureiros…
Essa “tradiçao” ignorante começou em 81 (a corrida, não a tourada) e até hoje contabiliza por volta de 16 mortos entre o humanos e incontáveis touros mortos.
Tá aí um ÓTIMO motivo pra eu me envergonhar das minhas raízes espanholas.
Beatriz, os encierros têm origem medieval. Do ponto de vista de ferimentos e mortes, nos encierros – ao contrário das touradas – o homem está numa posiçao de risco mais acentuada do que os animais. Compreendo seu ponto de vista e agradeço pelo seu comentário.
bestial
Estive na Espanha em 2008 e um espanhol de Madrid me convidou para correr lá, não fui por falta de dinheiro, mais do que de coragem, rs. Belíssimo relato.
Isso não é Festa e São Firmino e sim Festa de Tontos.
Pena que os touros nao podem “correr” da ignorancia humana. parabens a Folha por divulgar tao util informacao.
CADA DOIDO COM SUA MANIA….CADA CIDADE COM SEUS COSTUMES…..PENSO O QUE SERÁ MAIS FORTE…A MANUTENÇÃO DESSA TRADIÇÃO PARA OS MORADORES….O GANHO EM EUROS DÓLARES ETC..QUE ENTRAM NA CIDADE TRAZIDOS POR TURISTAS…..OU MESMO O SENTIDO DE SENTIR SABER O HERÓI DO DIA….A ADRENALINA CORRENDO SOLTA…PARA FAZER JUS…A DISPUTA ENTRE O TOURO DE MAIS DE MEIA TONELADA E A PEQUINÊS..E REAL FRAGILIDADE DO SER HUMANO SEMPRE EM BUSCA DE DESAFIOS PARA MOSTRAR ATÉ ONDE VAI SUA CAPACIDADE DE SER O MAIS PODEROSO..O MAIS CORAJOSO….E QUE PODE SUPERAR O ADVERSÁRIO…MAIS FORTE …FICA AÍ UMA PERGUNTA…QUE TALVEZ NEM ELES QUE ENFRENTAM OS RISCOS NESSA CHAMADA” TRADIÇÃO” MIXTA COM DIVERSÃO…E LUCROS PARA A CIDADE…SERÁ QUE AINDA ESTAMOS NUM PERIÓDO DE EVOLUÇÃO…QUE RETROAGE Á ÉPOCA DAS GRANDES DISPUTAS ENTRE AS BIGAS ROMANAS???? AS VEZES ME PARECE QUE NÃO EVOLUÍMOS..E QUE ANDAMOS SEMPRE EM CÍRCULOS PROCURANDO PELO QUE NÃO CONSEGUIMOS ALCANÇAR AO LONGO DOS TEMPOS….E QUE PARA MUITOS A VIDA AINDA VALE MUITO POUCO..MAS PELO MENOS NESSAS RUAS DE SÃO FIRMINO O TOURO TEM SUA VEZ DE GANHAR A DISPUTA…DIFERENTEMENTE DO QUE ACONTECE AINDA NAS TRADIÇÕES DAS TOURADAS NAS ARENAS ESPANHOLAS….
Chegará um dia no qual os homens conhecerão o íntimo dos animais; e nesse dia, um crime contra um animal será considerado crime contra a humanidade.
Leonardo DaVinci
PARABENS para o touro
Até quando meu Deus?…
Que povo mais idiota, não entendo que em pleno século 21 ainda existe este tipo de coisa…
Acho esse evento, juntamente com touradas e rodeios em geral, uma estupidez imensa que só o ser humano conseguiria inventar.
Quando tentam justificar, dizendo que é uma questão cultural ou tradição, costumo dizer que sou descendente de índios tupinambás que praticavam o canibalismo como questão cultural, religiosa e tradicional. Em seguida convido para um jantar lá em casa.
Muito espirituosa sua tirada sobre os tupinambás. Obrigado pelo comentário, Armando.
Como escapar??? Que sejam pegos e muito feridos! Animais não são brinquedos, não são palhaços pra transformar tudo em circo e festa! E pior que a maioria é morto depois…. isso todo mundo acha normal mas desejar que estes humanos imbecis sejam mortos ai sim é motivo de repúdio….
Essas atrocidades com os animais precisam acabar, isso é coisa pra gente com mentalidade de homem das cavernas!
O homem, revoluciona tudo, mas NÃO evolui!
Depois falam que só os brasileiros é que são babacas … UE é outro nível … :o)
Os espanhóis que participam desta festa animalesca são mais irracionais do que os touros…
Primeira vez que fico feliz ao ver as fotos desse evento bizarro!!! Poderia haver um touro para cada participante! Ponto pro touro!
Pois é… bem idiota…
Ao menos a Corrida com touros é mais justa para os touros do que Tourada que é cruel e covarde, querendo fazer o Toureiro herói ! O que não é verdade ! Tourada é uma patifaria estupida !
que legalllllllllll..viva o touro kkkk
brincadeira mais idiota
Texto maravilhoso…consegui vivenciar toda a emoção do “corre-corre”. Sei que eu ñ teria coragem pra correr na frente da manada, mas é bem certo que eu correria sim…uhauhaua
Muito obrigado, Paulo.
adoro quando isso acontece, tipo igual quando o leão ataca o domador.
1×0 pro Touro
É impressionante um país manter uma tradição que maltrata o animal, manter uma tradição que mostra a total covardia de um ser humano matando com crueldade um inocente, esse bichinho não rouba, não estupra, não mata, tenho vergonha de dizer que tenho sangue de Espanhol exatamente por ser contra esse absurdo, uma cultura chula que mostra a crueldade de um ser covarde.
Parabéns para o touro.
Parabéns para o touro…
Afetamina ou Adrenalina ?????
Gostei do seu texto mas ficou engracado a parte da Afetamina.
Obrigado pelo comentário, Luis.
Uma das reportagens mais idiotas que já li na minha vida!
A foto me conduziu para um texto tão frenético quanto a corrida descrita. Muito bom! Lembrei-me de Hemingway e de sua eterna juventude-rebelde.
Não consegui parar de ler o texto antes de seu final.
Continues a trazer estas experiências que provocam nosso imaginário, com essa boa escrita. Parabéns pela discussão provocada.
A estupidez humana é tamanha que fico abismado. Não estamos falando de nós do terceiro mundo, mas da Espanha. O ser humano é estúpido e ridículo por natureza, faz parte do seu DNA. Inteh.
Muito bom. Já estive por lá e lendo seu texto, fui capaz de me transportar no espaço e no tempo de volta para aquele lugar. Parabéns.
Lendo seu relato, dá pra sentir medo, claro que penso que o risco não vale a pena, mas pensando diferente de alguns aqui, os riscos são os mesmos de se fazer snowboard em um penhasco ou saltar de paraquedas e deixar para abrir o mais próximo do chão, o homem tem essa coisa maluca de procurar o máximo de adrenalina, seja cultural ou não, é uma coisa que transcende épocas e civilizações. Me parece bem pior os rachas que alguns fazem aqui no Brasil em ruas das cidades colocando em risco, pessoas que estão em risco sem se quer saber. Estranho costume, mas para quem tem coragem!!!
Qdo será que o homem sairá da pré-história?